Para nos ajudar a pensar, vamos olhar para a história da faca de Jeannot (Le Guen, 2007). De acordo com esta história, Jeannot comprou uma faca para si, à qual dá muita utilização. Por isso mesmo, a faca começa progressivamente a desgastar-se. Primeiro, Jeannot muda o cabo. Depois a lâmina. Muda todas as peças, até ter substituído todas as peças originais da faca. Com a passagem do tempo, a faca está totalmente diferente. Surge a questão, será que continua a ser a mesma faca? Ou será que, com o tempo, foi forjada uma nova faca?
Esta história encontra paralelo com o desenvolvimento humano. Com a passagem do tempo, o corpo altera-se. O corpo do bebé à nascença e o corpo de um idoso no final da vida são absolutamente distintos. A partir da reprodução celular, as nossas células são constantemente renovadas do nascimento até à morte (à exceção das células nervosas).
Apesar destas modificações, existe algo que permite que o ser humano preserve a sua identidade ao longo do tempo. No caso da faca de Jeannot, também esta mantém o mesmo propósito, a mesma estrutura e as mesmas funções. O facto de a faca continuar a ser a faca de Jeannot, mantendo o mesmo valor identitário, permite-nos considerar que se trata do mesmo objeto e não de um novo objeto criado com a passagem do tempo.
O que permite que a faca de Jeannot continue a ser a mesma faca e, similarmente, o que permite que o ser humano mantenha uma visão de si coesa ao longo do tempo, é um trabalho psíquico e identitário que se inicia na infância e que se mantém ao longo de toda a vida.
Este trabalho possibilita que o indivíduo tenha uma visão sobre si próprio relativamente estável e coesa ao longo do tempo. O individuo conhece-se a si próprio e consegue identificar a sua imagem no espelho. Através do processo contínuo de construção da identidade, ocorre um processo maturativo de autorrepresentação, e o indivíduo concebe-se como ser optante e intencional (Coimbra de Matos, 2002). Em casos de patologia, este processo fica comprometido.
Apesar das mudanças e transformações que ocorrem ao longo da sua vida, as pessoas não deixam de se pensar como sendo sempre as mesmas. As memórias de vida, em particular as de infância, refletem a ligação que existe entre as diferentes fases de desen-volvimento.
Quando o ser humano chega ao final da vida, olha para o seu percurso não de uma forma estática e unidimensional, mas sim contemplando diferentes momentos do seu desenvolvimento e a subjetividade com que constrói a narrativa dos acontecimentos da sua vida. Numa estrutura de personalidade que não seja patológica, há um sentimento de continuidade e a possibilidade de se identificar a si próprio ao longo do tempo.
Para poder compreender a sua vida, o ser humano conta o tempo. A vida de um indivíduo é um conjunto de segundos, de minutos, de dias, de semanas, de meses, de anos, de décadas. Contudo, representar o tempo é complexo. O tempo de vida de um ser humano, para além do ponto de vista cronológico, tem invariavelmente um valor simbólico que decorre das vivências de cada um. Apesar das múltiplas transformações que o homem vive, consegue atribuir um significado ao seu tempo e ter uma imagem integrada de si. Com as diferentes alterações e necessidades ao longo do tempo, a faca modificou-se. Com as diferentes vivências e transformações biológicas ao longo da sua vida, também o ser humano se altera. O tempo possibilita perdas e ganhos, mudanças e transformações que são essenciais para o desenvolvimento humano, que são passíveis de ser integradas por possuirmos uma visão única de nós mesmos.
Coimbra de Matos, A. (2002). Adolescência. Lisboa: Climepsi
Le Guen C. (2007). Comment ça naît, un moi. Revue française de psychanalyse, 71, 11-26. doi: 10.3917/rfp.711.0011
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